quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

"E não sou mulher?"


"Ain't I A Woman?" (em em português: "E não sou mulher?") foi o nome dado a um discurso feito de improviso pela ex-escrava Sojourner Truth, (1797-1883, nascida Isabella em Nova York). Pouco depois de conquistar a liberdade em 1827, tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. O discurso foi proferido na Women's Convention em Akron, Ohio, em 1851.

Truth argumentou que enquanto a cultura estadunidense colocava (metaforicamente) as mulheres brancas sobre um pedestal e lhes concediam certos privilégios (principalmente de não exercer atividades remuneradas), esta atitude não era estendida às mulheres negras. O discurso foi feito em resposta a um dos palestrantes do sexo masculino, o qual aparentemente estava na platéia.


Sojourner Truth


Relato em primeira mão e comentário

O discurso foi registrado por Frances Gage, militante feminista e uma das autoras do grande compêndio de materiais sobre a primeira onda feminista, The History of Woman Suffrage. Gage, que presidia o encontro, descreve o evento:


As líderes do movimento estremeceram ao ver uma negra alta e ossuda, num vestido cinza e turbante branco encimado por um boné grosseiro, marchar deliberadamente para dentro da igreja, caminhar com o ar de uma rainha pelo corredor e tomar assento nos degraus do púlpito. Um murmúrio de desaprovação foi ouvido por toda a congregação e as pessoas comentavam, um encontro abolicionista!, direitos da mulher e crioulos!, eu te disse!, vai, neguinha!. Repetidamente, as medrosas e trêmulas vieram até mim e me disseram com seriedade, "não deixe que ela fale, sra. Gage, vai nos arruinar. Todos os jornais do país vão misturar nossa causa com a abolição e crioulos, e seremos completamente estigmatizadas". Minha única resposta foi: "quando a hora chegar, veremos."
No segundo dia, os debates esquentaram. Pregadores metodistas, batistas, episcopais, presbiterianos e universalistas vieram ouvir e discutir as resoluções apresentadas. Um reivindicou direitos e privilégios superiores para os homens, baseado no "intelecto superior"; outro, porque "Cristo era varão; se Deus desejasse a igualdade da mulher, Ele teria dado algum sinal da Sua vontade através do nascimento, vida e morte do Salvador". Outro nos deu uma visão teológica do "pecado de nossa primeira mãe".
Havia poucas mulheres naqueles dias que ousavam "falar numa reunião"; e os augustos professores do povo estavam aparentemente levando vantagem sobre nós, enquanto os garotos nas galerias e os zombeteiros entre os bancos da igreja divertiam-se à larga com o desconforto que imaginavam atingir as "cabeças duras". Algumas das amigas mais sensíveis estavam quase ao ponto de perder a dignidade, e a atmosfera ameaçava tempestade. Quando, lentamente, do seu lugar no canto ergueu-se Sojourner Truth, a qual, até então, mal havia erguido a cabeça. "Não deixe que ela fale!", arquejaram meia dúzia ao meu ouvido. Ela moveu-se lenta e solenemente até a frente, pôs o velho boné no chão e volveu seus grandes e expressivos olhos para mim. Houve um som sibilante de desaprovação acima e abaixo. Levantei-me e anunciei, "Sojourner Truth", e implorei à platéia que fizesse silêncio por alguns instantes.
O tumulto cessou subitamente, e todos os olhares se fixaram nesta figura de quase amazona medindo cerca de 1,80 m de altura, cabeça erguida e olhos que penetravam as alturas como alguém num sonho. À sua primeira palavra, houve um profundo silêncio. Ela falou num tom profundo, o qual, embora não fosse alto, atingiu cada ouvido na congregação, e através da multidão aglomerada nas portas e janelas.

History of Woman Suffrage, 2da. ed., vol.1. Rochester, NY: Charles Mann, 1889. Editado por Elizabeth Cady Stanton, Susan B. Anthony e Matilda Joslyn Gage.


O discurso


Primeira versão registrada

Marcus Robinson, que assistiu à convenção e trabalhou com Truth, registrou a primeira versão do discurso na edição de 21 de junho de 1851 do Anti-Slavery Bugle.

Um dos mais singulares e interessantes discursos da convenção foi feito por Sojourner Truth, uma escrava alforriada. É impossível transcrevê-lo para o papel, ou exprimir qualquer idéia adequada do efeito que produziu sobre a platéia. Somente puderam apreciá-lo os que viram a forma poderosa dela, seu gestual devotado e sincero, e ouviram seu timbre forte e verdadeiro. Ela encaminhou-se para a frente até o tablado e dirigindo-se à presidente, disse com grande simplicidade: "Posso dizer umas poucas palavras?". Recebendo uma resposta afirmativa, ela prosseguiu:

Quero dizer umas poucas palavras sobre este assunto. Sou uma mulher de direitos. Tenho tantos músculos quanto qualquer homem, e posso trabalhar tanto quanto qualquer homem. Tenho arado e ceifado e cortado e aparado, e pode algum homem fazer mais do que isso? Tenho ouvido falar muito sobre igualdade dos sexos. Posso carregar tanto quanto qualquer homem, e posso comer tanto quanto também, se conseguir o que comer. Sou tão forte quanto qualquer homem. Quanto ao intelecto, tudo o que posso dizer é, se uma mulher possui uma medida, e um homem possui duas — por que ela não pode ter a sua medidazinha cheia? Vocês não precisam temer nos dar nossos direitos por medo de que queiramos demais, — porque não poderemos pegar mais do que nossa medida suporta. Os pobres homens parecem estar em total confusão e não sabem o que fazer. Porque, crianças, se têm direitos das mulheres, dêem-nos a elas e irão se sentir melhor. Vocês terão seus próprios direitos e eles não serão um grande problema. Não sei ler, mas sei ouvir. Ouvi a Bíblia e aprendi que Eva levou o homem a pecar. Bom, se a mulher subverteu o mundo, dêem-lhe a chance de colocá-lo na posição certa de novo. A senhora falou sobre Jesus, de como ele nunca desprezou as mulheres, e ela estava certa. Quando Lázaro morreu, Maria e Marta foram até ele com fé e amor e exortaram-no para que erguesse o irmão delas. E Jesus foi e Lázaro levantou-se. E como Jesus veio para o mundo? Através de Deus que o criou e da mulher que o deu à luz. Homem, qual foi o seu papel? Mas as mulheres estão discutindo sob as bênçãos de Deus e uns poucos homens se aproximaram delas. Mas o homem está num espaço apertado, o pobre escravo parte para cima dele, a mulher parte para cima dele, certamente ele está entre um falcão e uma águia.


O discurso registrado por Frances Gage

Frances Gage registrou o discurso em History of Woman Suffrage no que, segundo ela, era o dialeto falado por Sojourner Truth (cuja língua nativa era o holandês, então ainda usado em Nova York). Como o dialeto soa estranho mesmo para um leitor moderno em inglês, faz-se necessária uma versão atualizada:
Bem, crianças, onde há muita confusão deve haver algo de errado. Penso que entre os negros do Sul e as mulheres do Norte, todos falando sobre direitos, os homens brancos vão muito em breve ficar num aperto. Mas sobre o que todos aqui estão falando?
Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e erguidas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! E não sou mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado, e juntado em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! E não sou uma mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem - quando consigo o que comer - e aguentar o chicote também! E não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos, e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus me ouviu! E não sou mulher?
Então eles falam sobre essa coisa na cabeça; como a chamam mesmo? [alguém na platéia sussurra, "intelecto"] É isso, meu bem. O que isso tem a ver com os direitos das mulheres ou dos negros? Se a minha xícara não comporta mais que uma medida, e a sua comporta o dobro, você não vai deixar que a minha meia medidazinha fique completamente cheia?
Depois aquele homenzinho de preto ali disse que as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens, porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele.
Se a primeira mulher feita por Deus teve força bastante para virar o mundo de ponta-cabeça sozinha, estas mulheres juntas serão capazes de colocá-lo na posição certa novamente! E agora que elas estão querendo fazê-lo, é melhor que os homens permitam.
Obrigado aos que me ouviram, e agora a velha Sojourner não tem mais nada a dizer.


Palavras finais de Frances Gage

O seguinte relato contemporâneo foi extraído de History of Woman Suffrage de Gage:

Em meio a um bramido de aplausos, ela voltou ao seu canto deixando muitas de nós com os olhos cheios de lágrimas, e os corações repletos de gratidão. Ela havia nos tomado em seus braços fortes e nos carregado em segurança sobre um charco de dificuldades, virando totalmente a maré a nosso favor. Eu nunca antes em minha vida havia visto algo como a influência mágica que subjugou o espírito de desordem daquele dia, e transformou as zombarias e ironias de uma multidão excitada em comentários de respeito e admiração. Centenas afluíram para apertar as mãos dela, e congratular a velha mãe gloriosa, e desejar-lhe sucesso em sua missão de "testemunhar contra a maldade desta gente".

Fonte de pesquisa: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ain%27t_I_a_Woman%3F



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